As apostas esportivas online, popularizadas como “bets”, têm se tornado uma armadilha perigosa para milhares de famílias brasileiras. O drama, que cresce silenciosamente, já compromete até mesmo recursos essenciais como o Bolsa Família. Uma análise recente do Banco Central revelou que, apenas em agosto do ano passado, R$ 3 bilhões foram transferidos para casas de apostas virtuais — parte significativa desse valor saiu diretamente do benefício social.
O problema afeta, sobretudo, os lares mais vulneráveis, onde a ilusão de ganhos fáceis transforma esperança em um ciclo vicioso de dívidas e sofrimento.
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Um relato que expõe a realidade do vício

Uma jovem beneficiária compartilhou seu drama com as apostas online:
“Eu ganhava pouco no começo, às vezes R$ 50, mas já era um trocado que vinha do nada e ajudava muito. Aí começou a adicção: numa madrugada, que era quando eu jogava muito, estava com banca de R$ 10 e ganhei R$ 300. Apertei para jogar R$ 5 e de repente ganhei R$ 6.000 numa jogada.”
O entusiasmo inicial rapidamente se transformou em desespero:
“Fiquei eufórica, não dormi a noite inteira, contei para o meu marido, mas já entrei na mentira, porque falei que ganhei menos. Ele sempre foi contra. Desses R$ 6.000, não fiz nada com o dinheiro, fui apostando mais e perdi basicamente tudo, mas sempre tentando recuperar.”
A história, infelizmente, não é isolada. O vício em apostas cresceu a ponto de comprometer salários, 13º salários e até forçar muitas famílias a recorrerem a agiotas, mergulhando-as em dívidas impagáveis. No caso da jovem, ela, controlando a conta bancária da mãe em seu celular, utilizou o dinheiro do Bolsa Família para apostar em uma casa de apostas e perdeu tudo. Ao revelar o que havia acontecido, a mãe ficou profundamente decepcionada, mas o benefício não foi bloqueado.
Esse tipo de situação reforça a necessidade de medidas preventivas e educativas, já que o impacto emocional e financeiro das apostas pode agravar ainda mais a situação de vulnerabilidade dessas famílias.
Bilhões do Bolsa Família desviados para apostas
O levantamento do Banco Central escancarou uma realidade preocupante: cinco milhões de pessoas usaram recursos do Bolsa Família para apostar em bets apenas em agosto passado. Desse grupo, quatro milhões eram chefes de família que transferiram diretamente cerca de R$ 2 bilhões por Pix para sites de apostas.
O Banco Central alerta que famílias de baixa renda são as mais afetadas:
“É razoável supor que o apelo comercial do enriquecimento por meio de apostas seja mais atraente para quem está em situação de vulnerabilidade financeira.”
A promessa de lucro fácil, somada à falta de regulamentação rigorosa, cria o cenário perfeito para a propagação desse problema.
Governo tenta reagir, mas enfrenta limitações
Em setembro, o Ministério do Desenvolvimento Social, a Rede Federal de Fiscalização do Bolsa Família e o Cadastro Único se uniram para discutir formas de impedir que o dinheiro do programa seja usado em apostas.
Contudo, as medidas esbarram em barreiras legais e técnicas. A Advocacia-Geral da União explicou:
“Uma vez repassado o benefício para a conta, o dinheiro passa a ser do titular, e o poder público perde qualquer influência sobre sua destinação.”
Essa limitação impede que o governo bloqueie diretamente o uso do Bolsa Família em casas de apostas.
Apostas online: um fenômeno crescente e preocupante
Embora as apostas esportivas não sejam novidade, o cenário mudou drasticamente após 2018, quando a gestão Michel Temer sancionou a lei que liberou a operação das casas de apostas no Brasil. Desde então, o número de casos de dependência explodiu.
Segundo a psiquiatra Katia Branco Domingues Valente, do Pro-Amiti (Programa de Transtornos do Impulso da USP):
“Antes, eles chegavam no nosso ambulatório pedindo ajuda aos 40 anos. Hoje, pela intensidade do estímulo e facilidade de acesso, a média é de 25 anos.”
O impacto no cérebro, de acordo com especialistas, é semelhante ao causado por drogas como anfetamina, o que explica a rápida escalada do vício entre jovens.
Perfil dos apostadores: juventude em risco

O Datafolha aponta que 30% dos brasileiros que apostam online têm entre 16 e 24 anos. A maioria são homens, impulsionados pelo estímulo constante das plataformas digitais.
Esse dado é alarmante porque, além da juventude ser mais vulnerável, muitos ainda dependem financeiramente dos pais ou de programas de auxílio social.
Aposta irresponsável: reflexo de uma pandemia social
Profissionais da saúde pública consideram o vício em apostas uma “grande pandemia”. Além dos impactos emocionais e familiares, a compulsão tem refletido no sistema de saúde, exigindo mais atendimento em unidades básicas (UBSs) e nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
O agravamento do problema pede ações urgentes em todas as frentes: educação, regulamentação e saúde mental.
Onde buscar apoio para o vício em apostas
Para quem enfrenta o vício, é fundamental procurar ajuda especializada. Algumas opções incluem:
- Pro-Amiti: Programa da USP especializado em transtornos do impulso.
- CAPS (Centros de Atenção Psicossocial): Atendimento público em saúde mental em várias cidades.
- UBS (Unidades Básicas de Saúde): Primeira porta de entrada para encaminhamento e suporte psicológico.
- CVV (Centro de Valorização da Vida): Apoio emocional gratuito, disponível 24 horas, pelo telefone 188 ou pelo site.
O primeiro passo é reconhecer a dependência e buscar orientação antes que os danos sejam irreversíveis.